O fim da coluna da psicanalista Maria Rita Kehl no O Estado de S.Paulo foi um dos assuntos da semana, em particular na internet. Seu artigo “Dois Pesos” foi pesado demais para os donos do diário paulista. Neste espaço, publicamos vários artigos a respeito. A repercussão enorme gerou até um abaixo-assinado que corre pela rede em sua defesa. Passado o impacto, Rita Kehl conversou com CartaCapital a respeito das eleições presidenciais, que ela acompanha de perto, com o olhar da profissional conceituada em sua área e também com a visão de cidadã e jornalista, carreira que seguiu nos tempos da ditadura. Ela se diz escandalizada com os temas que tomaram conta do debate eleitoral e responsabilizou a campanha do PSDB por isso.
CartaCapital: Teu artigo no Estadão discutia a disseminação de um grave preconceito através da rede. Essa parece ter sido uma característica do uso do veículo nestas eleições, em particular entre a chamada classe média.Você acredita que a internet, pelas suas especificidades, ajuda a este tipo de comportamento?
Maria Rita Kehl: Ajuda de fato. A internet, pela facilidade de acesso, pelas características que só ela tem, apresenta este potencial terrível de ser lugar da fofoca, de blábláblá. Mesmo quando não é um uso irresponsável, como são os casos destes tuites para dizer ”olha, eu estou aqui”, “eu existo”, “olha a foto do meu filho”, “do aniversário do fulano”. Mas tem também um potencial incrível, como a possibilidade de convocar uma passeata da manhã para a tarde, como aconteceu antes da guerra do Iraque, em vários países do mundo, e reunir milhões de pessoas. Então, eu não condenaria a internet, ela tem grande potencial, é um veiculo que dá justamente a possibilidade de você se incluir, de você escrever, pelo menos para quem é da classe média ou que tem acesso a uma lan house. Ela serve a essas duas coisas. Talvez com o tempo os leitores comecem a criar sua própria capacidade de discriminar.
CC: O preconceito que você identifica no teu artigo, este incomodo com a ascensão dos mais pobres, e por consequência com um governo mais identificado com eles, não é uma marca das nossas elites que aparece muito na rede?
MRK: Veja, a internet divulgou essas correntes preconceituosas, apócrifas, que sempre começavam assim: “uma prima minha”, “um parente meu”, “um amigo da minha empregada”, sempre assim. Mas por outro lado, o que tem de legal, é que, por exemplo, este meu artigo foi mais lido que qualquer outra coisa que eu jamais tenha escrito. Se ele tivesse ficado apenas no Estadão, ele teria sido lido, mas jamais deste jeito. Isso é uma coisa muito legal.
CC: Falemos de ética: você acha que o caso Erenice atingiu eleitoralmente esta classe média?
MRK: Eu acho que sim. Eu li um artigo dizendo que o caso Erenice foi mais decisivo para exigir o segundo turno que essa “fofocaiada” toda sobre o aborto. E, infelizmente, está certo. O governo para o qual eu voto e continuo votando tem uma leniência com a questão da corrupção, que deixa até difícil um petista defender, tenho que dizer isso. Lula naturalizou a corrupção, como sendo parte do jogo político. E aí, está bom, quando fica mais escandaloso, demite. Mas “deixa acontecer”, entendeu? Renan Calheiros, Sarney, são vergonhas que a gente tem que engolir, fica parecendo que é culpa da oposição agitar isso. Claro que ela vai agitar. Nós agitaríamos isso se aparecesse uma coisa tão escandalosa na outra campanha. A diferença aí – que é a favor da atitude do governo Lula, mas que ao mesmo tempo não o torna vítima – é que o governo Lula não consegue blindar a imprensa como o governo do PSDB consegue, porque tem a imprensa na mão. Então, quando surge alguma coisa, surge como fofoca que desaparece no dia seguinte. Como a coisa do Paulo Preto, que o Serra não respondeu no debate e ficou por isso mesmo. A gente sabe que é um governo que blinda. O Alckmin, como a candidatura dele estava bem, teve a campanha toda em céu de brigadeiro, do começo ao fim, não tinha ninguém que pudesse pegar alguma coisa e contestar. E se pegasse, não ia sair na imprensa. De fato, a grande imprensa se encarrega de censurar quaisquer denúncias sobre os governos que ela apoia. Mas mesmo que a imprensa seja parcial ao denunciar um caso como o da Erenice, o caso em si está errado, não poderia aparecer.
CC: O governo não poderia ficar surpreso com a “escandalização” feita pela grande imprensa, certo?
MRK: Claro! Ele sabe qual é o jogo e não era para ter corrupção deste jeito. Uma coisa ou outra você não controla, uma coisa pequena, mas para mim é difícil responder quando as pessoas dizem: “mas, como? Estava no nariz dela! Era uma coisa que estava a família inteira metendo a mão”. Coloca os petistas numa situação difícil.
CC: Esta eleição está sendo marcada também pela discussão de temas no campo da moral: aborto, religião. O que te parece isso?
MRK: Eu acho que isso mostra o atraso da sociedade brasileira. Porque, claro, nenhum candidato vai ser eleito se estiver em descompasso com a maioria da sociedade. O Plínio foi um exemplo ótimo, de um cara que falava tudo o que tinha na cabeça, tudo o que ele pensa de verdade, de uma forma consistente, porque ele não tinha compromisso de se eleger. O que me espanta é o atraso da sociedade brasileira. E a ignorância aí é apoiada pelo Serra de misturar questões religiosas com questões políticas. Como é que as igrejas começam a pautar a lei agora? Uma coisa é eles decidirem o que é pecado e o que não é, outra coisa é eles decidirem o que é ilegal e o que não é.
CC: E isso acabou virando pauta de campanha presidencial, não é?
MRK: Vira pauta e vira motivo de constrangimento. A campanha do PSDB tem responsabilidades sim, de acirrar esta intolerância religiosa neste momento da campanha. A Dilma respondeu duas vezes no debate da Band que neste País não tem intolerância religiosa. Fica esta irresponsabilidade feia do PSDB estar acirrando isso, mas ao mesmo tempo a sociedade mostra neste ponto como é atrasada. Aparecem comentários de que a Dilma é a favor do aborto como se ela tivesse o poder de decidir, se ela apoia o aborto, vai ter aborto. Como se isso não tivesse que passar pelo Congresso. Além de tudo joga muito com a ignorância do povo.
CC: E os candidatos chegam a “endireitar”, fazer campanha nas igrejas e citarem Deus à exaustão. Não acha que isso tem um papel deseducador, em particular para crianças e adolescentes?
MRK: Isso é o pior. Por um lado, eu acho que o problema da corrupção não é da responsabilidade do PSDB, eles vão extrair o máximo de vantagens que puderem arrancar deste caso da Casa Civil. Por outro lado, é responsabilidade sim, do PSDB e da campanha Serra o tom fascistóide que estas coisas estão adquirindo. É horrível que os candidatos tenham que aparecer ajoelhados comungando, dizendo que são a favor da vida…claro que são a favor da vida, quem é que não é?Agora, é a Igreja que não é a favor da vida. Aí é uma opinião minha. A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto.Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que “a favor da vida” é esse?
CC: O Dafolha divulgou uma pesquisa que diz que a posição contra o aborto na sociedade aumentou depois destas semanas de discussão na campanha, veja o efeito nocivo.
MRK: Claro, porque o que circula é uma desinformação, “coitadinha da criancinha”, “eu poderia ter sido abortado” e “porque eu não fui abortado eu estou aqui”, não é neste grau. E a Marina tem responsabilidade nisso. Mesmo que a Dilma ganhe, a sociedade retrocedeu muito e isso é responsabilidade da campanha. É terrível.
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FONTE: CartaCapital