O circuito comercial de cinema ainda é cheio de hiatos no que tange a temática homossexual. Surge um exemplar como "O Segredo de Brokeback Mountain" (Ang Lee, 2005) ali, um "Direito de Amar" (Tom Ford, 2010) aqui e um "Do Começo ao Fim" (Aluisio Abranches) acolá. E só. São tramas lançadas por grandes estúdios e diretores gabaritados no mercado (o que não impede que sejam extremamente valorosas do ponto de vista estético e temático).
"O Primeiro que disse" é uma produção italiana que brinca com os clichês do gênero comédia romântica, apresentando um filme para qualquer público: leve, despretensioso, sem caricaturas ou discurso estereotipado. A direção de Ferzan Ozpetek é segura e guia os atores (e consequentemente, o público) para caminhos diversos sobre a temática ainda polêmica: sair do armário, manter-se equilibrado diante da nova postura assumida, lidar com os afetos dos amigos gays exagerados e estereotipados e, por fim, conviver com um amor que parece estar, como diríamos hoje, no linguajar popular, em outra vibe. São essas as abordagens desta comédia dramática com leves toques de romance e neurose, lançada no circuito comercial em todo o país, colaborando com a crescente (mas ainda não suficiente) ampliação da temática gay como protagonista das histórias.
Na sinopse oficial, somos informados que Tommaso (Riccardo Scamarcio, carismático e competente) pertence à tradicional família Cantone, proprietária de uma fábrica de massas no sul da Itália. Ele veio de Roma, onde almeja uma carreira de escritor, para uma reunião com todos. Até esse ponto, a trama lembra o recente "Quando você viu o seu pai pela última vez" (Amand Tucxer, 2009), onde Colin Firth vive uma situação conflituosa com o pai que deseja a carreira de medicina como profissão do filho, que no tempo da narrativa se torna um premiado escritor e especialista em literatura. As semelhanças vão até aí. Com a chegada de Tommaso, somos informados que seu irmão será anunciado como eleito para tocar os negócios da empresa e ele pretende aproveitar a ocasião para contar a todos sobre sua homossexualidade. São momentos de tensão e dúvidas: dizer ou não dizer? Eis a questão. Só que ele não contava que seu irmão Antônio (Alessando Preziosi, igualmente competente e belíssimo) tomaria a dianteira, comunicando aos familiares que também é gay, obrigando Tommaso a mudar de planos, escondendo a sua revelação e ainda assumindo a fábrica, mantendo uma postura artificial diante de todos, tendo em vista que a família ficaria chocados e seu pai (Ennio Fantastichini, muito engraçado), mais ainda. Mas ainda há surpresas: Tommaso não esperava a chegada da sua trupe urbana na casa de seus pais: amigos mais que coloridos, afetados e, em alguns momentos, exagerados (quase todos) no que tange às performances e reforço do estereótipo "eu sou gay, me notem".
"O Primeiro que disse" brinca com os clichês, ao invés de utilizá-los como artifício do desenrolar da narrativa. Belíssimos cenários e total noção de enquadramento são as características técnicas do filme, que dispõe de uma trilha sonora tipicamente italiana. O momento "Priscilla - A Rainha do Deserto" está presente na trama quando os amigos visitam Tommaso em sua casa. Sorte que o diretor percebeu as possíveis distorções na poesia pretendida pelo roteiro, retornando ao fio da meada a tempo de não estragar nada. Seria, como nos manuais de roteiro e teoria literária, o alívio cômico, o momento pícaro do enredo.
Ferzan Ozpetek sabe muito bem o que fazer com este tipo de material: em 1997, estreou com o longa-metragem "Hamam-O banho turco", narrando sobre a vida de um jovem italiano chamado Francesco, que herda uma propriedade de uma tia turca que provavelmente nunca chegara a conhecer. O jovem deixa a sua esposa e viaja para Istambul a fim de vender a casa. Em suas andanças pela cidade, descobre que o edifício abrigava uma antiga casa de banhos turcos. Ele acaba cancelando a venda e se rendendo aos encantos e mistérios da cidade, entre os quais um romance mais que inesperado. Ozpetek dirige bem e aponta com bastante peculiaridade muitos costumes italianos. Riccardo Scamarcio mostra-se igualmente talentoso, redendo tão bem quanto outros filmes, como por exemplo, "Meu irmão é filho único" (Daniele Lucheti, 2007). Tendo sido assistente de muitos filmes, o diretor turco radicado na Itália acabou por criar um estilo único, desses que comentamos ao assistir um filme de Woody Allen ou Pedro Almodóvar.
Além do drama sobre o posicionamento diante da família, revelações, a trama abre espaço para a relação de Tommaso com a avó, que segue o padrão de afetividade diante das situações deste tipo, tanto na vida real quanto nas narrativas cinematográficas com temática gay. Uma nova amizade insana também é apresentada, através de uma amiga da família totalmente insegura em relações amorosas, deixando Tommaso cheio de questionamentos sobre o que é um namoro.
Com 110 minutos de duração, "O Primeiro que disse" é uma despretensiosa narrativa sobre as situações mais inusitadas que passamos com nossas famílias antes e depois de sair do armário. Indicado para todos os públicos e idades, tamanha a delicadeza e sensatez do diretor ao abordar um tema que poderia muito bem cair na mesmice e no pastelão desmedido. À guisa de curiosidade, o filme teve orçamento de US$ 10 milhões e participou do Festival de Berlim 2010, na seção Panorama, filmado inteiramente na cidade de Apulia, na Itália. No elenco, Riccardo Scamarcio, Elena Sofia Ricci, Alessandro Preziosi e Lunetta Savino.
Apesar do lançamento nas salas de cinema, foi uma passagem tímida de um filme que precisa ser descoberto por todos.
"O Primeiro que Disse". Nota: 8. Já disponível em DVD.* Leonardo Campos escreve quinzenalmente neste espaço sobre cinema e lançamentos em DVD. É pesquisador em cinema, literatura e cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor de literatura.
Disponível em: Site A CAPA