sábado, 16 de outubro de 2010

Carta aberta da ABGLT as candidaturas de Dilma Roussef e José Serra



Prezada  Dilma e  Prezado Serra,

A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais –ABGLT, é uma entidade que congrega 237 organizações da sociedade civil em todos Estados do Brasil. Tem como missão a promoção da cidadania e defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, contribuindo para a construção de uma democracia sem quaisquer formas de discriminação, afirmando a livre orientação sexual e identidades de gênero.

Assim sendo, nos dirigimos a ambas as candidaturas à Presidência da República para pedir respeito: respeito à democracia, respeito à cidadania de todos e de todas, respeito à diversidade sexual, respeito à pluralidade cultural e religiosa.

Respeito aos direitos humanos e, principalmente, respeito à laicidade do Estado, à separação entre religião e esfera pública, e à garantia da divisão dos Poderes, de tal modo que o Executivo não interfira no Legislativo ou Judiciário, e vice-versa, conforme estabelece o artigo 2º da Constituição Federal:  “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Nos últimos dias, temos assistido, perplexos, à instrumentalização de sentimentos religiosos e concepções moralistas na disputa eleitoral.

Não é aceitável que o preconceito, o machismo e a homofobia sejam estimulados por discursos de alguns grupos fundamentalistas e ganhem espaço privilegiado em plena campanha presidencial.

O Estado brasileiro é laico. O avanço da democracia brasileira é que tem nos permitido pautar, nos últimos anos, os direitos civis dos homossexuais e combater a homofobia. Também tem nos permitido realizar a promoção da autonomia das mulheres e combater o machismo, entre os demais avanços alcançados.  O progresso não pode parar.

Por isso, causa extrema preocupação constatar a tentativa de utilização da fé demilhões de brasileiros e brasileiras para influir no resultado das eleições presidenciais que vivenciamos. Nos últimos dias, ficou clara a inescrupulosa disposição de determinados grupos conservadores da sociedade a disseminar o ódio na política em nome de supostos valores religiosos. Não podemos aceitar esta tentativa de utilização do medo como orientador de nossos processos políticos. Não podemos aceitar que nosso processo eleitoral seja confundido com uma escolha deposicionamentos religiosos de candidatos e eleitores. Não podemos aceitar que estimulem o ódio entre nosso povo.

O que o movimento LGBT e o movimento de mulheres defendem é apenas e tão somente o respeito à democracia, aos direitos civis, à autonomia individual. Queremos ter o direito à igualdade proclamada pela Constituição Federal, queremos ter nossos direitos civis, queremos o reconhecimento dos nossos direitos humanos. Nossa pauta passa, portanto, entre outras questões, pelo imediato reconhecimentoda união estável entre pessoas do mesmo sexo e pela criminalização dadiscriminação e da violência homofóbica.
  
Cara Dilma e  Caro Serra

Por favor, voltem a conduzir o debate para o campo das ideias e do confronto programático, sem ataques pessoais, sem alimentar intrigas e boatos.

Nós da ABGLT sabemos que o núcleo das diferenças entre vocês (e entre PT ePSDB) não está na defesa dos direitos da população LGBT ou na visão de que o aborto é um problema de saúde pública.

Candidato Serra: o senhor, como ministro da saúde, implantou uma política progressista de combate à epidemia do HIV/Aids e normatizou o aborto legal no SUS. Aquele governo federal que o senhor integrou também elaborou os Programas Nacionais de Direitos Humanos I e II, que já contemplavam questões dos direitos humanos das pessoas LGBT. Como prefeito e governador, o senhor criou asCoordenadorias da Diversidade Sexual, esteve na Parada LGBT de São Paulo eapoiou diversas iniciativas em favor da população LGBT.

Candidata Dilma: a senhora ajudou a coordenar o governo que mais fez pela população LGBT, que criou o programa Brasil sem Homofobia, e o Plano Nacionalde Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, com diversas ações. A senhora assinou, junto com o presidente Lula, o decreto de Convocação da I Conferência LGBT do mundo. A senhora já disse, inúmeras vezes, que o aborto é uma questão de saúde pública e não uma questão de polícia.

Portanto, candidatos, não maculem suas biografias e trajetórias. Não neguem seu passado de luta contra o obscurantismo.

ABGLT acredita na democracia, e num país onde caibam todos seus 190 milhõesde habitantes e não apenas a parcela que quer impor suas ideias baseadas numa única visão de mundo. Vivemos num país da diversidade e da pluralidade.

É hora de retomar o debate de propostas para políticas de governo e de Estado, que possam contribuir para o avanço da nação brasileira, incluindo a segurança pública, a educação, a saúde, a cultura, o emprego, a distribuição de renda, a economia, o acesso a políticas públicas para todos e todas!


Eleições 2010, segundo turno, em 15 de outubro de 2010.


ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis eTransexuais

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl


O fim da coluna da psicanalista Maria Rita Kehl no O Estado de S.Paulo foi um dos assuntos da semana, em particular na internet. Seu artigo “Dois Pesos” foi pesado demais para os donos do diário paulista.  Neste espaço, publicamos vários artigos a respeito. A repercussão enorme gerou até um abaixo-assinado que corre pela rede em sua defesa. Passado o impacto, Rita Kehl conversou com CartaCapital a respeito das eleições presidenciais, que ela acompanha de perto, com o olhar da profissional conceituada em sua área e também com a visão de cidadã e jornalista, carreira que seguiu nos tempos da ditadura. Ela se diz escandalizada com os temas que tomaram conta do debate eleitoral e responsabilizou a campanha do PSDB por isso.


CartaCapital:  Teu artigo no Estadão discutia a disseminação de um grave preconceito através da rede. Essa parece ter sido uma característica do uso do veículo nestas eleições, em particular entre a chamada classe média.Você acredita que a internet, pelas suas especificidades, ajuda a este tipo de comportamento?

Maria Rita Kehl: Ajuda de fato. A internet, pela facilidade de acesso, pelas características que só ela tem, apresenta este potencial terrível de ser lugar da fofoca, de blábláblá. Mesmo quando não é um uso irresponsável, como são os casos destes tuites para dizer ”olha, eu estou aqui”, “eu existo”, “olha a foto do meu filho”, “do aniversário do fulano”.  Mas tem também um potencial incrível, como a possibilidade de convocar uma passeata da manhã para a tarde, como aconteceu antes da guerra do Iraque, em vários países do mundo, e reunir milhões de pessoas. Então, eu não condenaria a internet, ela tem grande potencial, é um veiculo que dá justamente a possibilidade de você se incluir, de você escrever, pelo menos para quem é da classe média ou que tem acesso a uma lan house.  Ela serve a essas duas coisas. Talvez com o tempo os leitores comecem a criar sua própria capacidade de discriminar.



CC: O preconceito que você identifica no teu artigo, este incomodo com a ascensão dos mais pobres, e por consequência com um governo mais identificado com eles, não é uma marca das nossas elites que aparece muito na rede?

MRK: Veja, a internet divulgou essas correntes preconceituosas, apócrifas, que sempre começavam assim: “uma prima minha”, “um parente meu”, “um amigo da minha empregada”, sempre assim. Mas por outro lado, o que tem de legal, é que, por exemplo, este meu artigo foi mais lido que qualquer outra coisa que eu jamais tenha escrito. Se ele tivesse ficado apenas no Estadão, ele teria sido lido, mas jamais deste jeito. Isso é uma coisa muito legal.



CC: Falemos de ética: você acha que o caso Erenice atingiu eleitoralmente esta classe média?

MRK: Eu acho que sim. Eu li um artigo dizendo que o caso Erenice foi mais decisivo para exigir o segundo turno que essa “fofocaiada” toda sobre o aborto. E, infelizmente, está certo. O governo para o qual eu voto e continuo votando tem uma leniência com a questão da corrupção, que deixa até difícil um petista defender, tenho que dizer isso. Lula naturalizou a corrupção, como sendo parte do jogo político. E aí, está bom, quando fica mais escandaloso, demite. Mas “deixa acontecer”, entendeu? Renan Calheiros, Sarney, são vergonhas que a gente tem que engolir, fica parecendo que é culpa da oposição agitar isso. Claro que ela vai agitar. Nós agitaríamos isso se aparecesse uma coisa tão escandalosa na outra campanha. A diferença aí – que é a favor da atitude do governo Lula, mas que ao mesmo tempo não o torna vítima – é que o governo Lula não consegue blindar a imprensa como o governo do PSDB consegue, porque tem a imprensa na mão. Então, quando surge alguma coisa, surge como fofoca que desaparece no dia seguinte. Como a coisa do Paulo Preto, que o Serra não respondeu no debate e ficou por isso mesmo. A gente sabe que é um governo que blinda. O Alckmin, como a candidatura dele estava bem, teve a campanha toda em céu de brigadeiro, do começo ao fim, não tinha ninguém que pudesse pegar alguma coisa e contestar. E se pegasse, não ia sair na imprensa. De fato, a grande imprensa se encarrega de censurar quaisquer denúncias sobre os governos que ela apoia. Mas mesmo que a imprensa seja parcial ao denunciar um caso como o da Erenice, o caso em si está errado, não poderia aparecer.



CC: O governo não poderia ficar surpreso com a “escandalização” feita pela grande imprensa, certo?

MRK: Claro! Ele sabe qual é o jogo e não era para ter corrupção deste jeito. Uma coisa ou outra você não controla, uma coisa pequena, mas para mim é difícil responder quando as pessoas dizem: “mas, como? Estava no nariz dela! Era uma coisa que estava a família inteira metendo a mão”. Coloca os petistas numa situação difícil.


CC: Esta eleição está sendo marcada também pela discussão de temas no campo da moral: aborto, religião. O que te parece isso?

MRK: Eu acho que isso mostra o atraso da sociedade brasileira. Porque, claro, nenhum candidato vai ser eleito se estiver em descompasso com a maioria da sociedade. O Plínio foi um exemplo ótimo, de um cara que falava tudo o que tinha na cabeça, tudo o que ele pensa de verdade, de uma forma consistente, porque ele não tinha compromisso de se eleger. O que me espanta é o atraso da sociedade brasileira. E a ignorância aí é apoiada pelo Serra de misturar questões religiosas com questões políticas. Como é que as igrejas começam a pautar a lei agora? Uma coisa é eles decidirem o que é pecado e o que não é, outra coisa é eles decidirem o que é ilegal e o que não é.



CC: E isso acabou virando pauta de campanha presidencial, não é?

MRK: Vira pauta e vira motivo de constrangimento. A campanha do PSDB tem responsabilidades sim, de acirrar esta intolerância religiosa neste momento da campanha. A Dilma respondeu duas vezes no debate da Band que neste País não tem intolerância religiosa. Fica esta irresponsabilidade feia do PSDB estar acirrando isso, mas ao mesmo tempo a sociedade mostra neste ponto como é atrasada. Aparecem comentários de que a Dilma é a favor do aborto como se ela tivesse o poder de decidir, se ela apoia o aborto, vai ter aborto. Como se isso não tivesse que passar pelo Congresso. Além de tudo joga muito com a ignorância do povo.


CC: E os candidatos chegam a “endireitar”, fazer campanha nas igrejas e citarem Deus à exaustão. Não acha que isso tem um papel deseducador, em particular para crianças e adolescentes?

MRK: Isso é o pior. Por um lado, eu acho que o problema da corrupção não é da responsabilidade do PSDB, eles vão extrair o máximo de vantagens que puderem arrancar deste caso da Casa Civil. Por outro lado, é responsabilidade sim, do PSDB e da campanha Serra o tom fascistóide que estas coisas estão adquirindo. É horrível que os candidatos tenham que aparecer ajoelhados comungando, dizendo que são a favor da vida…claro que são a favor da vida, quem é que não é?Agora, é a Igreja que não é a favor da vida. Aí é uma opinião minha. A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto.Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que “a favor da vida” é esse?



CC: O Dafolha divulgou uma pesquisa que diz que a posição contra o aborto na sociedade aumentou depois destas semanas de discussão na campanha, veja o efeito nocivo.

MRK: Claro, porque o que circula é uma desinformação, “coitadinha da criancinha”, “eu poderia ter sido abortado” e “porque eu não fui abortado eu estou aqui”, não é neste grau. E a Marina tem responsabilidade nisso. Mesmo que a Dilma ganhe, a sociedade retrocedeu muito e isso é responsabilidade da campanha.  É terrível.


Leia também:

8 Respostas para “A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl”

  • Marlene Moraes disse:
    Eu fui uma das que compartilhou a entrevista em minha página no Facebook. A achei demais contundente e é a minha fala e relata exatamente o que penso! Fico feliz por sua colocação e fidelidade ao que a Rita disse! Parabéns!!!!
  • andre bueno disse:

    O PSDB e o Serra estão levando o Brasil para algo próximo ao que tínhamos em 64.

    É o retorno do discurso da TFP – Tradição Família e Propriedade,
    é o retorno de pensamentos do século XVIII.


    A Globo, Folha, Veja, embarcaram nisto, afinal de contas, o que interessa é o Poder!

    é a verba oficial!


    Não importa se teremos um estado em crise e um povo mais atrasado e alienado.

    Alias, alienação é o fermento que leva estes hipócritas ao poder.


    O problema é que se Serra for eleito,

    teremos um pais dividido politicamente.
    Dividido pelo preconceito e pelo fundamentalismo religioso.
    E isto terá impacto real na economia e na vida das pessoas.
    Os bons tempos da era Lula – com Serra – vão terminar.


    Não creio que Serra seja eleito,

    mas se for, não vai conseguir fazer um bom governo,
    não tem apoio no congresso,
    e muitos dos que o apoiam no voto, são totalmente contra este fundamentalismo religioso.
    E daí, como Serra vai governar? Como vai conciliar pontos de vistas tão contraditórios?


    Como a Globo vai conciliar nas suas novelas, aqueles papeis feminínos altamente volúveis,

    com esta nova realidade fundamentalista cristã?
    Será que as moças vão usar burca? e a cena excitante será ver os tornozelos da moça?


    O problema do modelo proposto por Serra,

    é que ele é incoerente do ponto de vista econômico (promessas inviáveis),
    inconsistente do ponto de vista moral e ético.
  • Regiane disse:
    Maria Rita sempre teve meu respeito e agora ainda mais quando eu soube que se negou a escrever sobre Psicanálise e partiu pra Política, entendendo que o seu olhar não separa uma coisa da outra e como é ruim fazer “consultas” em um jornal. Precisamos mesmo é disso Política com o P maiúsculo e o olhar psicanalítico pode contribuir.
    Só queria continuar essa conversa com ela. Maria Rita, você acha mesmo que retrocedemos? Ou será que nunca avançamos em alguns temas? Acho que o discurso politicamente correto e o que é cool no momento, nos fazem deixar de ver o que realmente se passa e a hipocrisia é geral. Quase nenhuma discussão é bem feita no Brasil. To falando de isenção, de racionalidade, de princípios e de ética. E aí todos são responsáveis: mídia, partidos, políticos, profissionais liberais, empresários e o povo que não sabe sua força… Cada qual sobrepõe argumentos a interesses próprios. E a escola vira lugar em que se aprende a passar no vestibular (classe média) ou para entrar em estatísticas de ensino na escola pública, não é lugar pra aprender a pensar sozinho.
    É uma ilusão acharmos que a sociedade brasileira é pacífica e tolerante. Os negros e favelados estão aí pra provar. Agora mulheres, gays e ateus estão na ordem do dia…
  • Cristina Paiva disse:

    Tem razão a entrevistada, quando diz que esta campanha joga com a ignorância do povo. Ambos os candidatos e seus partidos, principalmente o PT, cujo eleitorado pertence maciçamente a faixa menos instruída, que vem sendo manipulada de todas as maneiras. Bem feito! Agora está levando o troco, com a Dilma se atrapalhando para fazer o sinal da cruz e tendo que se contradizer, com relação ao aborto.

    Infelizmente, esta é a realidade brasileira. O povo que se dane! Quero a alternância de poder e vou votar no Serra. Cancei do discurso do Lula. Mudança já!
  • Vitor Aparecido Beleze disse:
    Permito-me discordar quando fala que o caso Erenice nao poderia ter acontecido. Como nao poderia, se esse comportamento na sociedade e mais corriqueiro do que se imagina e faz parte da nossa cultura. Cabe nesses casos, quando detectado tomar medidas efetivas. O problema e que dao ibope a situacoes de interesses, sabedores que sao da alienacao e igonrancia de grande parcela da sociedade. Se fossemos um pais melhor quanto a educacao, cultura e cidadania, uma revista como a Veja morreria no “ninho”.
  • Osmar disse:
    Voces lêem uma entrevista como essa e só enxergam o que querem, até esta eleitora do PT sabe que a corrupção virou procedimento de rotina administrativa no governo atual.
    Não é a fofoca que esta matando Dilma é a corrupção endemica!
    Se ela for eleita espero que o PT aprenda a lição e veja a Ética como um valor a ser praticado e não somente cobrado.
  • Maura Gallassi - Taquaritinga/SP disse:

    Perfeito! Todos tem suas responsabilidades, com essa desinformação sobre aborto, enganando a população de como são elaboradas as leis. A população em sua maioria não sabe qual o papel do Congresso Nacional, e pior, não querem saber.

    Escuto muitas vezes de pessoas “cultas”, que dizem que pagam impostos demais e não querem saber de política. Ninguém quer a responsabilidade da cidadania, esta é nossa dura realidade!
  • Wilsão disse:
    Dia 31 de outubro de 2010; É DILMA!!! É 13!!!

    FONTE: CartaCapital

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dois pesos






Publicado no jornal o Estado de S. Paulo, o artigo Dois pesos
desagradou à direção da empresa. Foto: Damião A. Francisco/ divulgação



Por Maria Rita Khel*


Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
*Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzida do site O Escrevinhador

266 Respostas para “Dois pesos”

  • Giovani Mocelin disse:
    Muito obrigado por ser clara e escrever de maneira lúcida!
  • Finalmente consigo ler uma matéria que representa a realidade do Brasil! Estava já chateado de tanto ver a mídia tendenciosa e elitista não traduzir em palavras para milhões de brasileiros o que se passa com outros milhões de brasileiros secularmente excluídos.
  • Bia disse:
    Parabéns pelo artigo!!!Este sim deveria ser enviado em correntes de e-mail. Os críticos do Bolsa-família deveriam conhecer mais a realidade do Brasil.
  • Paulo disse:

    Estou de pleno acordo com o texto. Muito lúcido. Trabalho em um escritório em São Paulo e, pareço ser a unica voz contrária ao movimento “o povo é burro”. Lembro todos aqui, que o “povo burro” elegeu o FHC por duas vezes. E que o que tornou a figura dele negativa foi a incompetência que impôs ao país 8 meses de racionamento de energia, entre outros problemas graves, como a não geração de empregos, os empréstimos ao FMI, sem contar as ridículas privatizações.
    Até o momento, meus argumentos não fizeram qualquer efeito sobre o meu grupo de trabalho, embriagado com nas notícias tendenciosas contra a Dilma e a favor do Serra.

    VOU VOTAR NA DILMA NOVAMENTE!
  • Robson Macias disse:

    VIVA O POVO POBRE BRASILEIRO.
    SABEM DE UMA COISA, ESTOU CONVENCIDO QUE NUNCA NA HISTÓRIA DESSE PAIS, AS ELITES DA COMUNICAÇÃO JOGARAM TÃO BAIXO. SÃO VERDADEIROS BANDIDOS QUE USAM A RMA DA MANIPULAÇÃO, DA MENTIRA E DA DIFUSÃO DO QUE CHAMAM LIBERDADE DE IMPRENSA. ESTE ANO MOSTRARAM A CARA. SE JUNTARAM AS GANQUES DOS FANÁTICOS DA IGREJA CATÓLICA E EVANGÉLICA. E ISSO ME INTRISTECE MUITO. CATÓLICOS EQUIVOCADOS E ENGANADOS POR UMA ESPIRITUALIDADE CONSERVADORA.GENTE QUE NA VERDADE, NÃOS EGUE A CRISTO MAIS ALGUM LIDER CARISMÁTICO, PADRE OU PASTOR.
    FORA SERRA. ESSE É O GRITO QUE DEVE EGOAR NO BRASIL. E SE A MARINA TIVER UM POUCO DE BOM SENSO E DISCERNIMENTO (EESPIRITUAL), APOIARÁ A DILMA. CASO CONTRÁRIO VAI SER MANIPULADA POR ESTES TAIS VERDES BRASILEIROS, QUE NADA MAIS SÃO DE QUE ELITES DE INTELECTUAIS QUE NÃO SABEM NADA DE POBREZA. SÃO A BURGUESIA ECO-CAPITALISTA.
    MAS EU CREIO QUE COM EMPENHO DE TODOS HAVEREMOS DE PRESENTIAR AO LULA COM A VITÓRIA DE DILMA.
    QUE OS POBRE SE LEVANTEM CONTRA ESSA BURGUESIA DO PSDB. FORA COM ESSA GENTE QUE SÓ ATRAZOU O BRASIL. FORA COM ESSES QUE QUEREM GANHAR ELEIÇÃO PARA EMPREGAR OS QUE NÃO GANHARAM A ELEIÇÃO E SÃO MUITOS DA OPOSIÇÃO.
    A MIDIA PODRE DO BRASIL PRECISA MESMO DE CONTROLE.
    QUE AJA UMA LEGISLAÇÃO NO BRASIL PARA QUE A MÍDIA BRASILEIRA SEJA MAIS RESPONSAVEL.
    QUE A PIG, SINTA A MÃO FORTE DO POVO BRASILEIRO NOS VOTOS DO SEGUNDO TURNO.
  • Soraia F. Silva disse:
    A matéria é muito relevante, assim como o autor, também fui bombardeada com emails preconceituosos, que criticavam o atual governo e até com desrespeito ao Presidente, são os ditos “intelectuais”, os instruídos que não são capazes nem de respeitar o Presidente de seu país. As colocações foram relevantes, a classe média e alta estão morrendo de raiva por constatar que os novos pobres do nosso país sairam da medicância e agora podem pelos menos se alimentar com a pouca ajuda que recebem dos programas sociais.
  • Vinícius disse:
    Texto muito bom. Uma coisa é viver numa realidade deplorável e outra é crer que todas as pessoas brasilieras possuem oportunidades iguais. Parece que a ausência da pobreza incomoda mais que a sua presença. Qualquer avanço social é visto como retrocesso. A palavra populismo é quase uma evocação as trevas. Basta ter uma simples “ameaça” para que estes “anjos intelectualizados” reapareçam para salvar o Brasil do “mal”.
  • Léo Costandrade disse:
    Nada conseguiria resumir melhor o que diz e o que faz esta podre elite brasileira, se eu soubesse expressar o que penso em forma de texto seria exatamente assim que eu escreveria.
  • Antonio José de Cerqueira Antunes disse:
    Concordo em gênero número e grau com Maria Rita Khel. Se os ricos, ou quase, querem contratar os que recebem a bolsa família ou participam de outro programa social, é fácil de resolver. Basta oferecer um salário compensador, com muito bem prescreve a lei da oferta e da demanda, pertencente a uma teoria que é a base do atual modelo liberal. E, o que é mais importante: os comerciantes e industriais estão satisfeitíssimos. Estão ganhando mais dinheiro com a bolsa família e que tais pelo aumento de vendas que ela proporciona. Então, onde está o capitalismo? Parece que na verdade existe é uma reação sem base de razão. Sua base ainda é em grande parte a do modelo patriarcal da “casa grande e senzala” absorvida por famílias de classe média e média alta. O brasil hoje está numa encruzilhada de aceitar ou não o capitalismo tal como ele é. Nosso capitalismo ainda é bem conservador de valores discordantes.
  • sergio do carmo de oliveira disse:

    ESTA PARCELA DE ELEITORES (“A ELITE”), NO FUNDO, ESTÁ DESCONTENTE COM A REGRA DEMOCRÁTICA NA QUAL CADA CIDADÃO VALE UM VOTO, SEJA ELE POBRE OU RICO. O QUE PENSA ESTA GENTE É QUE O SEU VOTO DEVERIA VALER PELO MENOS DUAS VEZES MAIS QUE O VOTO DO MISERÁVEL…..
    SÃO DEMOCRATAS SE O POBRE VOTA NOS CANDIDATOS DELES; CASO CONTRÁRIO, O POBRE É BURRO E NÃO SABE VOTAR….
  • Jones Dari Goettert disse:
    A distribuição geográfica dos votos em Dilma e em Serra indicam, de certa forma, um Brasil “periférico” ao “lado” de um Brasil “concentrado”. Milton Santos e María Laura Silveira, em “Brasil, território e sociedade”, indicavam a existência de uma “região concentrada” (abarcando as atuais regiões Sul e Sudeste”), que, ao lado de parte do Centro Oeste, apresenta-se como o centro da economia brasileira. É significativo, assim, que os votos dos mais pobres sejam para Dilma, e dos mais ricos para Serra, e só isso já seria suficiente para pensar sobre quais as direções (tanto para o passado como para o futuro) apontam Dilma e Serra em seus programas. Isso, é claro se desejarmos refletir o Brasil sem os preconceitos que historicamente têm participado dos olhares e das práticas dos mais ricos sobre os mais pobres. Obrigado.
  • Deborah Neves disse:
    Sensacional!

  • É realmente estarrecedor imaginar do que viviam antes, esses brasileiros que agora têm o Bolsa Família.
    Mais estarrecedor ainda será se a direita retomar o poder e retirar essa miséria que está dando de comer aos pobres. E isso pode, sim, acontecer. A mídia é golpista. Para 31 de outubro muitas mentiras e “choques” estão sendo preparados provavelmente.
    É curioso, entretanto, que muitas das pessoas que falam mal do Bolsa Família estudam em universidades públicas, se aperfeiçoam através de bolsas de estudo e delas abusam depois de suas graduações na vida acadêmica. Aos amigos, tudo. Aos pobres, a lei.
    Nem tudo está perdido: existe uma elite que pensa. E sabe que quanto menor for a diferença social menos precisa se acastelar em condomínios.
  • Edison Carvalho disse:
    Mas não confundamos o voto do Povão que recebe o justo Bolsa Família como o Voto daqueles que elegerm Tiririca, Romário, e outros bichos…….., mas que ao mesmo tempo cacifaram Geraldo e Aloísio Tucano-Quercista Nunes…..!!!!!
  • Celso Rinaldi disse:
    Nao tem o que adicionar.Disse realmente tudo. Parabèns, Maria!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Cidadania LGBT e as Eleições 2010

Já na primeira semana do segundo turno das eleições presidenciais de 2010, dois Projetos de Lei - da competência do Legislativo Federal – surgiram no debate acerca das candidaturas ao mais alto cargo do Executivo. Nesta confusão entre competências das esferas governamentais, trouxe-se para a arena eleitoral a discussão da cidadania da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), como se a questão dos direitos humanos de determinados setores da sociedade fosse algo que pudesse ser usado para desmerecer uma ou outra candidatura à Presidência da República.  

À luz das discussões e declarações feitas aos meios de comunicação na semana passada sobre os Projetos de Lei em questão: o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122/2006 e o Projeto de Lei nº 4914/2009; sinto-me obrigado a fazer umas considerações e a reproduzir na íntegra o texto de ambas as proposições, para que – em vez distorções e afirmações inverídicas a seu respeito – os(as) leitores(as) possam conhecer, avaliar e chegar às suas próprias opiniões sobre os mesmos. Recorrendo ao filósofo grego Aristóteles, quando disse “O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”, vamos à reflexão:

O PLC 122/2006 objetiva amparar setores da população que ainda não contam com legislação específica que os garanta a proteção contra a discriminação, criando um paralelo com outras leis já regulamentadas que dispõem sobre crimes de discriminação, como é o caso do racismo. Ademais, o PLC 122/2006 não se restringe somente à proteção da população LGBT, sendo muito mais abrangente do que isso.

Projeto de Lei da Câmara nº 122, de 2006:

(Substitutivo, aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal em 10/11/2009)

Art. 1º A ementa da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.” (NR)

Art. 2º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.” (NR)

“Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares ou locais semelhantes abertos ao público.
Pena: reclusão de um a três anos.

Parágrafo único: Incide nas mesmas penas aquele que impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público de pessoas com as características previstas no art. 1º desta Lei, sendo estas expressões e manifestações permitidas às demais pessoas.” (NR)

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.” (NR)

Art. 3º O § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação:
“§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero:
..............................................................................” (NR)

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

No caso especifico da população LGBT, determinados setores no Congresso Nacional têm argumentado desde a Constituinte que basta a disposição generalizada constante do Art. 3º da Constituição Federal, de que não haverá “preconceitos de ... sexo, ... e quaisquer outras formas de discriminação.”

Ora, se fosse assim, não ocorreriam em média 200 assassinatos de pessoas LGBT por ano no Brasil; a impunidade dos autores destes crimes não seria corriqueira; não haveria estudos científicos produzidos por organizações de renome, como a Unesco, e até pelo próprio Ministério da Educação, comprovando inequivocamente a existência de níveis elevados de práticas e atitudes discriminatórias contra pessoas LGBT nas escolas; não haveria estudos da Academia confirmando esta mesma discriminação na sociedade brasileira como um todo. O Governo Federal não teria implantado o Programa Brasil Sem Homofobia, e não estaria implementando o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT, se não existissem discriminação e violência contra esta população.

Parte do propósito do PLC 122/2006 é contribuir para reverter este quadro vergonhoso de desrespeito aos direitos humanos básicos da população LGBT no Brasil, como descreveu o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello:

“São 18 milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam-se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas de preconceitos, discriminações, insultos e chacotas” ... e que as vítimas dos homicídios ... “foram trucidadas apenas por serem homossexuais”.      

O PLC 122/2006 tem sido apelido por determinados setores de “mordaça gay”. Afirmamos que a liberdade de expressão é universal, um direito de todos, inclusive a liberdade de expressão de crença religiosa, conforme garantida constitucionalmente. O projeto não veda que dentro do estabelecimento religioso se manifestem as crenças e se mantenham as posições religiosas, nem existe a possibilidade de padres ou outras autoridades religiosas serem presos por estes motivos e muito menos a Bíblia ou outros livros sagrados serem "modificados". Mas a liberdade de expressão, seja de quem for (das religiões, das pessoas LGBT, de todo mundo), também há de respeitar o próximo, sem discriminá-lo. Isto vale para todos, e não se constitui em uma espécie de penalidade às religiões. É apenas a aplicação do preceito constitucional da universalidade da não discriminação e da não violência.

Ademais, o PLC 122/2006 foi motivo de várias audiências públicas e já sofreu alterações no Senado, visando atender aos anseios acima expostos. Ao terminar sua tramitação no Senado terá que voltar para a Câmara dos Deputados em razão das modificações que sofreu e ainda poderá vir a sofrer. Sempre estivemos abertos ao diálogo com todas as partes interessadas para que a proposição final tenha a melhor redação possível, ao mesmo em que garanta a não discriminação, inclusive das pessoas LGBT.

O outro projeto de lei que teve seu propósito distorcido no debate das eleições presidenciais diz respeito à união estável entre pessoas do mesmo sexo. Reproduzo aqui o texto desta proposição:

Projeto de Lei nº 4914/2009 de 2009:

Art. 1º - Esta lei acrescenta disposições à Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, relativas à união estável de pessoas do mesmo sexo.

Art. 2º - Acrescenta o seguinte art. 1.727 A, à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil.

Art. nº 1.727 A - São aplicáveis os artigos anteriores do presente Título, com exceção do artigo 1.726, às relações entre pessoas do mesmo sexo, garantidos os direitos e deveres decorrentes.”

Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Como se pode ver, o P/L nº 4914/2009 propõe tão somente o alterar o Código Civil para que reconheça a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Em nenhum momento propõe o casamento, pelo contrário: faz exceção a esta possibilidade.

Cabe indagar, por que tanta polêmica acerca do “casamento gay nas igrejas”. Onde será que está escrito isso no projeto de lei acima?

O P/L nº 4914/2009 visa apenas garantir os direitos civis de pessoas do mesmo sexo que convivem em união estável.  Isto porque estudos mostram que, comparando um casal heterossexual com um casal homossexual, este último não tem acesso a pelo menos 78 direitos garantidos ao casal heterossexual, entre eles: não têm reconhecida a união estável; não têm direito à herança; não têm direito à sucessão; não podem ser curadores do parceiro declarado judicialmente incapaz. Em alguns casos essa falta de amparo aos casais do mesmo sexo chega a ser cruel, como no caso da morte de um(a) parceiro(a), onde o(a) parceiro(a) sobrevivente – às vezes depois de muitos anos de convivência – além de perder o(a) parceiro(a), fica sem nenhum bem e nem sem onde morar, porque a família do(a) falecido(a) exerce o direito sobre a propriedade deste(a), enquanto o(a) sobrevivente é desamparado(a) pela lei na forma como está.
Aqui tem-se um caso patente do descumprimento das disposições Constitucionais da igualdade, da não discriminação e da dignidade humano, que o P/L nº 4914/2009 visa corrigir.

Há de se lembrar que tanto o PLC nº 122/2006 como o P/L 4914/2009 tratam de questões de direitos civis. São proposições legislativas fundamentadas na lei maior da nação brasileira, a Constituição Federal.  

Ainda, o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e os princípios, direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição se baseiam nela. A Declaração é “Universal” porque os direitos humanos são indivisíveis. Ou seja, aplicam-se igualmente a todos os seres humanos, independente de sua nacionalidade, cor, etnia, convicção religiosa, e independente de serem heterossexuais, bissexuais, homossexuais, ou de qualquer outra condição

Outro princípio fundamental que deve ser preservado acima de tudo neste debate é o princípio da laicidade do Estado. Desde a Proclamação da República, em 1889, o Estado brasileiro é laico. Isso quer dizer que no Estado laico não há nenhuma religião oficial, e há separação entre o governo e as religiões. Assim sendo, os cultos, as crenças e outras manifestações religiosas são respeitadas, dentro de suas esferas independentes, da mesma forma que o Estado tem sua independência das religiões.

Creio piamente que os direitos humanos não se barganham, não se negociam, simplesmente se respeitam, e que devemos escolher nossa candidatura pelas propostas que tem pelo país, pela biografia, pela capacidade de governar, e pela capacidade de fazer valer a Constituição Federal, indiscriminadamente.

Como disse Ulisses Tavares precisamos olhar de novo: não existem brancos, não existem amarelos, não existem negros: somos todos arco-íris.


Autor: Toni Reis, Presidente da ABGLT– Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais