quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dois pesos






Publicado no jornal o Estado de S. Paulo, o artigo Dois pesos
desagradou à direção da empresa. Foto: Damião A. Francisco/ divulgação



Por Maria Rita Khel*


Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
*Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzida do site O Escrevinhador

266 Respostas para “Dois pesos”

  • Giovani Mocelin disse:
    Muito obrigado por ser clara e escrever de maneira lúcida!
  • Finalmente consigo ler uma matéria que representa a realidade do Brasil! Estava já chateado de tanto ver a mídia tendenciosa e elitista não traduzir em palavras para milhões de brasileiros o que se passa com outros milhões de brasileiros secularmente excluídos.
  • Bia disse:
    Parabéns pelo artigo!!!Este sim deveria ser enviado em correntes de e-mail. Os críticos do Bolsa-família deveriam conhecer mais a realidade do Brasil.
  • Paulo disse:

    Estou de pleno acordo com o texto. Muito lúcido. Trabalho em um escritório em São Paulo e, pareço ser a unica voz contrária ao movimento “o povo é burro”. Lembro todos aqui, que o “povo burro” elegeu o FHC por duas vezes. E que o que tornou a figura dele negativa foi a incompetência que impôs ao país 8 meses de racionamento de energia, entre outros problemas graves, como a não geração de empregos, os empréstimos ao FMI, sem contar as ridículas privatizações.
    Até o momento, meus argumentos não fizeram qualquer efeito sobre o meu grupo de trabalho, embriagado com nas notícias tendenciosas contra a Dilma e a favor do Serra.

    VOU VOTAR NA DILMA NOVAMENTE!
  • Robson Macias disse:

    VIVA O POVO POBRE BRASILEIRO.
    SABEM DE UMA COISA, ESTOU CONVENCIDO QUE NUNCA NA HISTÓRIA DESSE PAIS, AS ELITES DA COMUNICAÇÃO JOGARAM TÃO BAIXO. SÃO VERDADEIROS BANDIDOS QUE USAM A RMA DA MANIPULAÇÃO, DA MENTIRA E DA DIFUSÃO DO QUE CHAMAM LIBERDADE DE IMPRENSA. ESTE ANO MOSTRARAM A CARA. SE JUNTARAM AS GANQUES DOS FANÁTICOS DA IGREJA CATÓLICA E EVANGÉLICA. E ISSO ME INTRISTECE MUITO. CATÓLICOS EQUIVOCADOS E ENGANADOS POR UMA ESPIRITUALIDADE CONSERVADORA.GENTE QUE NA VERDADE, NÃOS EGUE A CRISTO MAIS ALGUM LIDER CARISMÁTICO, PADRE OU PASTOR.
    FORA SERRA. ESSE É O GRITO QUE DEVE EGOAR NO BRASIL. E SE A MARINA TIVER UM POUCO DE BOM SENSO E DISCERNIMENTO (EESPIRITUAL), APOIARÁ A DILMA. CASO CONTRÁRIO VAI SER MANIPULADA POR ESTES TAIS VERDES BRASILEIROS, QUE NADA MAIS SÃO DE QUE ELITES DE INTELECTUAIS QUE NÃO SABEM NADA DE POBREZA. SÃO A BURGUESIA ECO-CAPITALISTA.
    MAS EU CREIO QUE COM EMPENHO DE TODOS HAVEREMOS DE PRESENTIAR AO LULA COM A VITÓRIA DE DILMA.
    QUE OS POBRE SE LEVANTEM CONTRA ESSA BURGUESIA DO PSDB. FORA COM ESSA GENTE QUE SÓ ATRAZOU O BRASIL. FORA COM ESSES QUE QUEREM GANHAR ELEIÇÃO PARA EMPREGAR OS QUE NÃO GANHARAM A ELEIÇÃO E SÃO MUITOS DA OPOSIÇÃO.
    A MIDIA PODRE DO BRASIL PRECISA MESMO DE CONTROLE.
    QUE AJA UMA LEGISLAÇÃO NO BRASIL PARA QUE A MÍDIA BRASILEIRA SEJA MAIS RESPONSAVEL.
    QUE A PIG, SINTA A MÃO FORTE DO POVO BRASILEIRO NOS VOTOS DO SEGUNDO TURNO.
  • Soraia F. Silva disse:
    A matéria é muito relevante, assim como o autor, também fui bombardeada com emails preconceituosos, que criticavam o atual governo e até com desrespeito ao Presidente, são os ditos “intelectuais”, os instruídos que não são capazes nem de respeitar o Presidente de seu país. As colocações foram relevantes, a classe média e alta estão morrendo de raiva por constatar que os novos pobres do nosso país sairam da medicância e agora podem pelos menos se alimentar com a pouca ajuda que recebem dos programas sociais.
  • Vinícius disse:
    Texto muito bom. Uma coisa é viver numa realidade deplorável e outra é crer que todas as pessoas brasilieras possuem oportunidades iguais. Parece que a ausência da pobreza incomoda mais que a sua presença. Qualquer avanço social é visto como retrocesso. A palavra populismo é quase uma evocação as trevas. Basta ter uma simples “ameaça” para que estes “anjos intelectualizados” reapareçam para salvar o Brasil do “mal”.
  • Léo Costandrade disse:
    Nada conseguiria resumir melhor o que diz e o que faz esta podre elite brasileira, se eu soubesse expressar o que penso em forma de texto seria exatamente assim que eu escreveria.
  • Antonio José de Cerqueira Antunes disse:
    Concordo em gênero número e grau com Maria Rita Khel. Se os ricos, ou quase, querem contratar os que recebem a bolsa família ou participam de outro programa social, é fácil de resolver. Basta oferecer um salário compensador, com muito bem prescreve a lei da oferta e da demanda, pertencente a uma teoria que é a base do atual modelo liberal. E, o que é mais importante: os comerciantes e industriais estão satisfeitíssimos. Estão ganhando mais dinheiro com a bolsa família e que tais pelo aumento de vendas que ela proporciona. Então, onde está o capitalismo? Parece que na verdade existe é uma reação sem base de razão. Sua base ainda é em grande parte a do modelo patriarcal da “casa grande e senzala” absorvida por famílias de classe média e média alta. O brasil hoje está numa encruzilhada de aceitar ou não o capitalismo tal como ele é. Nosso capitalismo ainda é bem conservador de valores discordantes.
  • sergio do carmo de oliveira disse:

    ESTA PARCELA DE ELEITORES (“A ELITE”), NO FUNDO, ESTÁ DESCONTENTE COM A REGRA DEMOCRÁTICA NA QUAL CADA CIDADÃO VALE UM VOTO, SEJA ELE POBRE OU RICO. O QUE PENSA ESTA GENTE É QUE O SEU VOTO DEVERIA VALER PELO MENOS DUAS VEZES MAIS QUE O VOTO DO MISERÁVEL…..
    SÃO DEMOCRATAS SE O POBRE VOTA NOS CANDIDATOS DELES; CASO CONTRÁRIO, O POBRE É BURRO E NÃO SABE VOTAR….
  • Jones Dari Goettert disse:
    A distribuição geográfica dos votos em Dilma e em Serra indicam, de certa forma, um Brasil “periférico” ao “lado” de um Brasil “concentrado”. Milton Santos e María Laura Silveira, em “Brasil, território e sociedade”, indicavam a existência de uma “região concentrada” (abarcando as atuais regiões Sul e Sudeste”), que, ao lado de parte do Centro Oeste, apresenta-se como o centro da economia brasileira. É significativo, assim, que os votos dos mais pobres sejam para Dilma, e dos mais ricos para Serra, e só isso já seria suficiente para pensar sobre quais as direções (tanto para o passado como para o futuro) apontam Dilma e Serra em seus programas. Isso, é claro se desejarmos refletir o Brasil sem os preconceitos que historicamente têm participado dos olhares e das práticas dos mais ricos sobre os mais pobres. Obrigado.
  • Deborah Neves disse:
    Sensacional!

  • É realmente estarrecedor imaginar do que viviam antes, esses brasileiros que agora têm o Bolsa Família.
    Mais estarrecedor ainda será se a direita retomar o poder e retirar essa miséria que está dando de comer aos pobres. E isso pode, sim, acontecer. A mídia é golpista. Para 31 de outubro muitas mentiras e “choques” estão sendo preparados provavelmente.
    É curioso, entretanto, que muitas das pessoas que falam mal do Bolsa Família estudam em universidades públicas, se aperfeiçoam através de bolsas de estudo e delas abusam depois de suas graduações na vida acadêmica. Aos amigos, tudo. Aos pobres, a lei.
    Nem tudo está perdido: existe uma elite que pensa. E sabe que quanto menor for a diferença social menos precisa se acastelar em condomínios.
  • Edison Carvalho disse:
    Mas não confundamos o voto do Povão que recebe o justo Bolsa Família como o Voto daqueles que elegerm Tiririca, Romário, e outros bichos…….., mas que ao mesmo tempo cacifaram Geraldo e Aloísio Tucano-Quercista Nunes…..!!!!!
  • Celso Rinaldi disse:
    Nao tem o que adicionar.Disse realmente tudo. Parabèns, Maria!

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